terça-feira, 27 de outubro de 2015

Antropomorfismos - Kalleb, o cão.


                Kalleb é um cachorro velho que vive sozinho numa casa que considera demasiada grande para ele, entretanto há muitos anos não põe a pata para fora das limitações de seu quintal. Trabalha produzindo relatórios dos dados que recebe, e  depois envia por email para uma empresa de porte consideravelmente grande.
Entre os litros de leite que bebe, entre as ajeitadas nos óculos e as paradas para morder o rabo, rapidamente seu dia passa e os relatórios ficam prontos, sempre com antecedência. Raramente recebe visitas, elas costumam se impressionar com a extravagância das cores de sua decoração, no entanto aos olhos de Kalleb, tudo era uma variação de cinza. 
Algumas vezes vai até o portão e observa a rua, mas sente-se incapaz de abri-lo, vê outros cães passando sempre acompanhados, seja de pessoas ou outros cães, "sabe-se que raramente um cão anda só", diz para si mesmo e logo sua ansiedade passa. Retorna para dentro de casa com a imagem da companheira que o abandonou, ela o castrou para não terem filhos, passeavam sempre juntos, depois dela nunca mais saiu, não entende por que o deixou, mas tenta sempre pensar nela de uma maneira positiva.

Afinal um cão de dez anos acredita que terá sorte se viver mais três, na sua conta já são setenta, esperava somente uma coisa: que após sua morte, ela voltasse para enterrá-lo.

Texto - Cadu Taveira.


domingo, 4 de outubro de 2015

Máquina do Antitempo.

Seria uma bolha ou capsula na qual um corpo imerso vaga, em transe e são na transição do espaço imaginário, buracos de minhoca que talvez sejam, em verdade, tubos do esgoto de acesso à privada vida enclausurada na cela concretizada pela distância e rebocada por cusparadas secas de uma boca que rogou pragas. Pregos são excelentes fixadores e resistem bem às marteladas firmes de uma mão bruta, de um corpo bruto, de uma tortura brutal e atravessam madeira ou punhos de profetas sem que os percebam como parte da grande história. Estacadas são mais importantes quando cravadas no coração das criaturas funestas, que se alimentam do sangue rubro da donzela virgem que escorre por entre as pernas. Pênis só importa em cópula e volúpia que se finde em gozo, o prazer é todo meu em conhecer a relatividade.



Carlos Eduardo Taveira.


sábado, 12 de setembro de 2015

O mar, a pedra e o amor.

          A água espumante e salgada se projeta em ondas que quebram nas pedras da superfície, há céu cinza e há nuvens espessas, há o sopro do vento e o barulho do mar, há a linha do horizonte que se estende nos limites da visão, há a pupila que observa, há pés sobre a pedra e areia por entre os dedos.
         Sobretudo o pensamento, além dos limites palpáveis, interpõe-se ao cenário e distorce o ambiente. Aquele que perde o olhar no limite do horizonte, não está a observar seus limites, mas sim a questionar suas possibilidades.
       "O que faz aí sozinho?", disse um conhecido ao aproximar-se. "Está pensando na vida?".
       "Às vezes faz bem”, disse amigavelmente e completou, “sim, eu vim refletir um pouco".
       "Alguém especial ou problemas financeiros?".
       "É sempre uma das duas", respondeu sem se entregar, "não é?".
       "Sim". Ambos riram forçosamente, sabiam que havia muito mais no que se pensar, mas estavam cientes que essas são as duas coisas que mais preocupam a maioria das pessoas.
       "É alguém especial", confessou finalmente.
       "Fica tranquilo, ela volta".
       "Não, ela não volta, algumas pessoas simplesmente passam, é a transitoriedade da vida, e particularmente, eu prefiro assim. Quando seu sistema imunológico combate um vírus e o aniquila, ele aprende como vencê-lo e você não é mais infectado por aquele mesmo tipo de vírus, com o amor funciona de maneira parecida".
       "Mas não se pode ser imune ao amor".
       "Isso é platônico".
       "O quê?".
       "Isso de dizer que não se pode ser imune ao amor, é algo idealizado por novelas e romances baratos, o amor perfeito que supera tudo não existe de verdade".
       "E qual sua ideia de amor?"
       "Não é a minha ideia, mas sim o que realmente é".
       "E o que é?"
       "É como essa pedra bruta que apanha das ondas e não sai do lugar, que é tocada pelo mar e o adora, mas não faz ideia de sua profundidade, e não o teme, pois não conhece a força de suas águas”.

Carlos Eduardo Taveira dos Santos



quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A Igreja - [Trecho de O Mal de Otávio]


          
          O âmbito tinha uma arquitetura pseudogótica, a iluminação oblíqua e débil das velas, era reforçada pelo resquício de luz vespertina que trespassava os vitrais coloridos das janelas pontiagudas, neles havia mosaicos da Sagrada Família, do Menino Jesus, e da Santa Mãe Virgem; quatro pilares de cada lado estruturavam a abóboda da nave, na frente de cada pilar havia uma estatua de gesso que representava um santo diferente. Otávio distinguiu São Francisco de Assis, o protetor dos animais, São Jorge montado em seu cavalo branco a esmagar o dragão maligno, São Pedro com a chave do céu, além de outros tantos que fugiam ao seu conhecimento; o altar tinha o chão de mármore e a mesa estava forrada com toalha branca, sobreposto estava o cálice, a âmbula dourada com as hóstias, as galhetas com água e vinho, e o Missale Romanum, na parede ao fundo do altar, havia uma cruz cor de carvalho ostentando a imagem de Cristo, magro e humilhado, com o ferimento da lança ao lado do peito, coroado com espinhos na cabeça a gotejar sangue, o semblante cabisbaixo de um derrotado. Imerso em sua análise, Otávio concluiu que não havia melhor sentença do que a própria que foi dita: "Pai, perdoai-os, pois não sabem o que fazem".

O Mal

O mal quer nos ver entregue
A morte não quer nos levar
A vida impõe dificuldades
A dor quer nos apanhar

Os fortes não sabem perder
Os fracos não sabem ganhar
O risco paralisa você
O medo te faz chorar

A dor não deixa esquecer
O coração não quer lembrar
As imagens atormentam você

Pesadelos não deixam sonhar

Tolos não querem compreender
Sábios estão tentando explicar
Os cegos ainda podem ver
E os surdos podem escutar

Homens não são deuses
O mundo não vai acabar
O mal dominou a terra
E nela irá continuar

Carlos Eduardo Taveira dos Santos


Pintura de Paul Gauguin [1848 - 1903] - Eva e a árvore da ciência.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Vias do Vento

                     Olá meu caro desamor, faz algum tempo que não nos correspondemos, minhas cartas não chegam mais a ti e nem mesmo meu falcão pôde localizá-la, entretanto descobri as vias do vento, recebi, através de um sopro em meu ouvido, a garantia de que bastava escrever, fazer um aviãozinho e atirar ao ar para que a mensagem lhe fosse entregue.
                Escrevi para lhe dizer que estive num ambiente comum as nossas memórias.
                Hoje resolvi pedalar, segui paralelo à linha do trem em direção ao imenso descampado, todo aquele vazio era como a própria savana de meu coração, árvores mirradas e sombras escassas, o Sol escaldante arde como a latejada incomoda, o firmamento dono de um azul tão pálido, quase branco, nuvens tênues cujas formas não se assimilavam a nada. No solo as colônias de cupinzeiros protuberantes aqui e ali.
                Encostei a bicicleta numa árvore e sentei na grama, como quem prepara um ritual, preparei meu fumo e acendi, logo ouvi seu sorriso bem próximo, em seguida vi sua imagem pedalando ao longe.
                Um trem passou e o maquinista acenou pra mim. Eu estava próximo à placa escrita ‘fim da linha’, creio que se lembre, foi exatamente onde paramos.
Ass. Eterno desamor

domingo, 30 de agosto de 2015

Inácio: O conto Grego.

     Havia um garoto muito astuto que costumava caçar borboletas, certo dia, distinguiu pousar em seu jardim um belo par de asas cor escarlate, aproximou-se na ponta dos pés e atirou sua rede. Acabou surpreendido, pois as asas, sem dúvida alguma eram de borboleta, mas o corpo era o de uma moça, ficou acanhado e sem reação, a mocinha começou a gritar, então Inácio, temendo que a ouvissem, disse.
     “Calma moça, não grite”.
     “Então me tire daqui, pensa que sou algum animal?”
     O garoto coçou a cabeça dizendo, “pensei que fosse uma borboleta”.
     “Deste tamanho?”, retrucou a moça.
     “Sim”, ainda muito acanhado, “uma borboleta gigante”, prontificou-se a livrá-la da rede.
     Ao desvencilharem-se da rede, suas asas ganharam destaque e magnetizaram o olhar do garoto.
     “Meu nome é Hedonê”, disse a moça com asas de borboleta, “e o seu?”.
     “Inácio”.
     Hedonê estava completamente nua, entretanto Inácio tinha olhos apenas para as asas vermelhas e reluzentes, naquele movimento rítmico e frenético que a mantinha plainando a sua frente.
     “Não vai dizer mais nada?” questionou-o arqueando uma das sobrancelhas, “Costuma-se ser mais cordial ao dirigir-se a uma deusa”.
     “Desculpe-me”, disse o garoto abaixando a cabeça, reconheceu sua falta e completou. “suas asas são lindas, tenho muitas borboletas no meu quarto, mas nenhuma tem um par de asas tão belas”.
     Hedonê ficou encantada com o elogio, pediu para que o garoto lhe mostrasse suas borboletas. No quarto havia alguns aquários e outros potes menores onde as mantinha.
     Hedonê descontentou-se ao ver as borboletas presas e pediu para que Inácio as libertasse.
     “Liberte-as e levarei você para um voo, que será mais alto do que qualquer borboleta jamais voou”.
     Inácio libertou as borboletas que fugiram em sincronia pela janela, Hedonê, como prometido, levou Inácio para um voo magnífico pelos céus, alcançaram o olimpo, onde ela serviu-lhe néctar e dançou ao som da lira de Apolo, apresentou-lhe Eros e Psiquê, antes de trazê-lo de volta.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Yggdrasil

      


      Avistei essa árvore num fim de tarde, de suas raízes evidenciadas até os galhos salientes de sua copa, havia uma beleza obscura e sombria, por trás de seu tronco e além do mato estava a linha do horizonte em transição crepuscular.
      A imagem dessa árvore ficou por dias em minha mente, após concluir o desenho não pude deixar de olhar e lembrar da Yggdrasil, árvore do universo na cultura nórdica e que liga os nove mundos, suas raízes faziam parte dos mundos inferiores onde o solo era infértil e haviam monstros terríveis, no topo da árvore estava a cidade dourada, chamada Asgard, terra dos deuses,e Valhala, onde são recebidos os gloriosos guerreiros mortos em combate.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Pan & Sofia

Estavam deitadas na grama, era noite, barriga vira travesseiro. No céu as estrelas impalpáveis deslumbrantes, na Terra voa um pirilampo que pousa ao alcance das mãos, luz intermitente e sorriso permanente. Nuvens não espessas se espalham sem ocultar o brilho das estrelas, do vagalume ou dos olhos. Do grilo apenas barulho e do sapo também, mas distante, ainda bem, e perceptível somente quando não há risos ou vozes como agora.
“Sofia, como consegue não crer?”
“Na verdade, Pan, eu duvido de tudo que acredito”.
“Mas, não sei se é o instante, tudo se encaixa tão bem, a grama é macia...”
“Sua barriga também”.
           Risos.
“É sério, o calor e a brisa que refresca quando toca na pele, a beleza das estrelas, o pisca-pisca do vagalume, você e eu”.
            Risos meigos.
            “Pan, o que está tentando me dizer?”
            “Estou apenas pensando no todo... Agora sai de cima da minha barriga”.

Carlos Eduardo Taveira dos Santos


segunda-feira, 27 de julho de 2015

A Poetisa e o Desamor

     Certa vez conheci uma aspirante a poetisa, seus olhos cortantes rasgavam minha alma, eram donos de um brilho tão belo que me fazia inseto, e eu, obviamente seguia na direção de sua luz, completamente cego.
     Com relação às minhas apetências, não havia o co-sentimento citado por Kundera, voltando ao traço do paralelo, a luz não se atrai pelo inseto.
     As últimas palavras que ouvi da aspirante a poetisa, foram terrivelmente belas, lembro-as melhor que quaisquer outras, ela disse: "Não posso lhe dar amor, mal posso, apenas lhe dar palavras e ainda assim, seriam tão murchas quanto flores mal cuidadas e secas".

Texto: Carlos Eduardo Taveira dos Santos




segunda-feira, 20 de julho de 2015

Retratos

As fotografias de verões anteriores faziam um belo papel na história de vida, formavam uma colcha de retalhos nostálgicos, em suma contentes. Janelas para o passado, ainda que muitas deixassem aquela parcela de vazio e preenchessem outros espaços com angustia e arrependimento... Ah, mesmo as puramente felizes, essas significavam saudade, o ser humano em sua complexidade pode ter inúmeras reações diante de determinado retrato. O fato é que dificilmente ele não se deixará levar pela tão falada nostalgia, a memória de outros dias, vista assim num quadro e não apenas em mente, acaba por estimular ao anacronismo psíquico. Olhar para si próprio no passado e ver-se jovem e alegre até que é bom, desde que esteja puramente satisfeito consigo e tenha o espírito leve perante todos os atos.

Texto: Carlos Eduardo Taveira.


segunda-feira, 6 de julho de 2015

Pseudo-tormento

Resolveu tomar o ônibus para facilitar o percurso que não estava disposto a transpor caminhando.
Sentia-se demasiadamente cansado.
O pensamento inerte sob um véu tênue. O tecido através do qual enxergava, era normalmente chamado de loucura. Não ocultava sua obstinação.
Entrou no ônibus atormentado, mas por sua própria realidade.
Havia inúmeras barreiras, como obstáculos de corrida de cavalos – estava em meio a inúmeros outros corredores que as saltavam em seus quadrúpedes, viu-se sem montaria.
No ônibus, o fato de estar lotado, era o que menos o infortunava, mas quando ouviu o grito daquela criança, não era choro, era uma palavra, ela gritava "legal", e aquela feição da mais pura felicidade sem por que, apenas porque também é da natureza humana, como uma substancialidade que vai se perdendo com o tempo.
Em meio a todo seu pseudo-tormento, aquela pura alegria ingênua, bem diante de seus olhos. Aquilo massacrou seu espírito.

Carlos Eduardo Taveira dos Santos.

O Pilar do Templo

Estou voltando no tempo
Transcendendo a existência
Estou saindo deste mundo
Buscando a minha essência

Eu estou vivo
Saindo do rol de zumbis
E estou rindo
Busco somente ser feliz

A noite está clara
Como é belo o luar
Que reflete luz do sol
E me faz enxergar
Após tudo virar treva
Decidi me separar

Eu não saí e nem sigo só
Vejo pilares caídos ao chão
Derrubados como dominós
Não atrapalham minha visão


Pois o que foi dito
Eram palavras ao vento
E tudo que foi feito
Insanidade de momento.

Carlos Eduardo Taveira dos Santos.


quinta-feira, 2 de julho de 2015

Existência Abstrata

Durante um breve minuto
Num momento de colapso
Um pensamento transitório
Vindo dos confins da mente
Dos confins da memória
Aos confins da história
Breve momento de reflexão
Instante de indignação
Um momento sem ação
Eterna dúvida sem explicação
Num olhar distante
Pensamento distante
E mundo distante
No raciocínio
Deste instante
A vida incessante
A morte insensata
A existência abstrata.


Carlos Eduardo Taveira dos Santos.



terça-feira, 23 de junho de 2015

Sobre satisfação.


     "Você sabe por que não existe perfeição?"
     Questionou-me e tragou seu maldito cigarro, do qual a fumaça mal cheirosa, alcançava-me inevitavelmente as narinas. O tempo que pensei tornou a pergunta retórica.
     "Porque não existe satisfação plena, permanentemente".


Carlos Eduardo Taveira.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

O Cronista lírico

Ele estava lendo uma de suas próprias crônicas favoritas, fazia isso como se nunca tivesse a lido, como se mesmo não a houvesse escrito, contudo não pôde evitar o esboço da mulher que aflorava entre as linhas, e que apenas ele conhecia. Questionou-se como algo que se apresenta tão belo em paisagem e sentido, com cenário e sonoro aos olhos e ouvidos, poderia representar algo que em si, de tão efêmero não teria podido nem mesmo fazer parte de sua história, numa futura e possível autobiografia. Questionou-se se seria necessário; tudo aquilo que escreve hoje já não é parte de sua vivência? Não é como se relatasse em cada crônica e cada poesia parte do seu eu? Ou de inúmeros “Eus”, ou as inúmeras faces de seu eu? Via-se como o ‘Lobo da Estepe’ de Hermann Hesse.
Todas as suas crônicas e poesias unidas a muitos outros de seus textos, revelariam sobre ele na posteridade, fazer uma autobiografia seria como escancarar a janela, lembrou-se do personagem de Milan Kundera, e sua analogia à casa de vidro dita por André Breton, “onde nada é secreto e está aberto a todos os olhares”, veio-lhe a mente outra imagem, a ave mãe que alimenta seus filhotes com a comida mastigada no bico, nenhuma das analogias fez jus ao que pensava, estava, além disso, com o pensamento na posteridade, não fazia questão de viver muito, apenas o suficiente para concluir sua obra, seria capaz de argumentar com a personificação da morte, como o cavaleiro medieval do ‘Sétimo Selo’ de Ingmar Bergman, que a desafia para uma partida de xadrez, antes que o leve ao outro mundo; assim poderia convencê-la a esperar mais um pouco, nada obstante a evocaria com suas próprias palavras, após percorrer sua última linha com suas ultimas frases e o ponto final.
Partiria então, mas deixaria tudo na Terra, nos seus textos os personagens sobreviveriam por ele, como uma espécie de truque, seria mesmo uma forma de ludibriar a morte? Decidira-se faz alguns anos: “Minha vida é escrever, isso é o que me mantém vivo”. Pensou em sua argumentação com a morte e concluiu que já havia realmente acontecido, por isso tamanho peso, tentou se livrar do peso criando um personagem que o carregava até o fim da história, mas percebeu que ao invés de destruir o peso, ele havia o eternizado, recentemente teve a vontade de exprimir seu espírito, expeli-lo com um sopro ou até mesmo enfiando a mão goela abaixo para lhe tirar de dentro, queria vê-lo dissolver-se no ar como desaparece a fumaça de um trago, certamente sentir-se-ia aliviado com tamanha libertação. Mas é inútil, seu espírito está preso à vida de seu corpo, e no seu espírito está contido o castigo ao qual está preso seu Eu, mas quem lhe prendera? A morte para garantir o acordo? Ou ele próprio? Ainda que não haja mais duvida de sua capacidade, daqui pra frente ele tem sempre a responsabilidade de escrever algo mais e aceita seu destino, poderia escrever eternamente e pensou que se a morte fosse mesmo inteligente, não aceitaria o acordo, afinal, para ele, havia sempre algo mais para ser escrito.

Carlos Eduardo Taveira dos Santos.


quinta-feira, 11 de junho de 2015

Le Cirque et la Vie.

     Espetáculo maravilhoso e macabro,  frente ao público se faz respeitável pelo risco de catástrofe inevitável.
     Atiçar o Leão indomável, fazer pirofagia sob a lona inflamável, acrobacias de um trapezista gracioso e admirável, tão leve quanto uma pluma, basta um erro e o abismo é seu fracasso.
     O palhaço de sorriso gasto e cansado pela alegria a qual foi fadado, engolidores de espada e mulheres barbadas já não impressionam mais, o ilusionista já se fez sumir da vista e deixou os aplausos para trás. 


Carlos Eduardo Taveira.


quarta-feira, 20 de maio de 2015

Mágoas em águas inebriadas

   As aparências entregam, desculpe-me expor desta forma, contestando um paradigma de senso comum, contudo, para olhares mais atentos e certas características evidentes a sentença se faz correta, ainda que à mercê de equívocos, detalhes podem sempre surpreender; mas veja, por exemplo:
   Aquele sujeito no balcão, conversando com o garçom como fossem amigos de longa data, sentado no banco, com alguma elegância embora embriagado, curvado sobre o balcão e apoiado nos cotovelos. Veja seu sorriso débil e seu olhar com brilho de angústia, repare como as mangas arregaçadas de sua camisa evidenciam seu relógio caro, ao qual ele não pousa o olhar há algum tempo, afrouxou a gravata e deixou de lado o terno, toma um cowboy duplo, sem gelo, a dose é cara e não é a primeira.
   Ele mira toda mulher que passa, repara sem dissimular a expressão do rancor e do desejo que sente, e cada vez que volta o olhar ao copo, traga de seu uísque, um gole grande que desce rasgando a garganta, mas que não o invade como gostaria, como uma onda que se erige acima das outras, transpõe a orla e invade as casas levando tudo que um dia foi sólido para o abismo do intestino de um deus desconhecido, ele já sofreu esse abalo, entretanto a onda que destruiu sua casa deixou destroços que nem mil goles podem levar.

sábado, 28 de março de 2015

Pequena Crônica futebolística.

   Não se deve rejeitar o esporte e discriminá-lo pejorativamente por conta do governo e do sistema, quão menos fazer o mesmo ao seu torcedor.
   O amor e o ódio sentidos da poltrona às arquibancadas, do fone de ouvido do rádio ao vislumbramento do estádio; tudo tão humano. A competição, a garra, a determinação, a superação, a vibração do jogador tomada por ar de alívio e paz de espírito com a libertação da raiva num semblante de prepotência, enquanto o torcedor vibra de alegria eufórica e quase insana.

   Em contrapeso o antagonista chora em sua triste revolta, cria esperança, expectativa, torna-se aflito, tenso, intolerante as falhas. Eis aí um bom exemplo do que é ser humano.

Carlos Eduardo Taveira dos Santos.



quinta-feira, 5 de março de 2015

Confissão

O sabor de minhas atitudes, liberais e pecaminosas, temperadas com ervas de luxúria, já está  amargo dos falsos prazeres e pseudos desejos, nos quais me abro, não como livro, pois não sou livro, sou mesmo páginas soltas e muitos pensamentos perdidos.
Venho em partes separadas que se encaixam com o tempo, mais parede do que solo, mais vertical, construção inacabada, percebe-se a falta de tijolos, evidência incontestável das ausências e irregularidades.

Não sei se o que (sou/vejo/vivo/sinto), é dádiva ou é maldição, - escolha sua palavra

Flutuo por todos os mundos sem pousar, como um semideus mesquinho com inveja dos mortais, - felizes e efêmeros -, quando meus pés tocam o solo não sustentam meu corpo, equilibro-me com pensamentos bons e atitudes nem tanto. 
Meu ego é descentralizado e cheio de "ísmos" e mimos. 
Minha libra desajustada, indica erroneamente que meus pequenos delitos e grandes pecados, pesam o mesmo que meus poucos atos de bondade e minhas muitas palavras empíricas e eloquentes, que muitas vezes servem apenas como desculpas para minhas falhas.
Sempre fui muito mais poses que aparências, mais os frutos de que a raiz, mais o profundo do que a superfície, em que muitas vezes boiei como um barquinho de papel mal feito.

Mas quando minhas palavras fazem a bela mulher relembrar poesias, quando meus pensamentos fazem o belo rapaz me exaltar, ah... Quem sou eu neste mundo infame? O garoto perdido na floresta em seu anseio por liberdade, prestes a tornar - se lobo solitário? A cabeça pensante austera, cercada de dignidade, cérebros e célebres amigos? Ou sou apenas poses, sabores e embarcações débeis? Papel na água. 
Quantos Cristos beijei por menos de trinta pratas? Quantas vezes atuei como Mordred? Eu que fui  de guru a falso profeta e herege. Eu que compartilho o fogo roubado, tenho o fígado estragado, tomei os olhos do oráculo e vi meu futuro; nele havia um muro, cercando um terreno vazio.



Carlos Eduardo Taveira. 

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

O nascer na cidade.

   Nasce o Sol num dos lados do horizonte e até transpor o céu haverá muito o que ocorrer, nascem com ele todas as cores e muitas das coisas, trivialmente as mais corriqueiras. Despertam os trabalhadores e também os estudiosos, bebes de sono leve, crianças que vão para a escola. O firmamento pálido de um azul sútil, o cheiro doce da manhã, o orvalho sobre as plantas tem seu charme todo especial, digno do zoom d'uma câmera; o aroma de café fresquinho e que sabe-se ao longe, fumegante. A preguiça no caminhar, os rostos amassados e os olhinhos apertados, ainda mal adaptados a luz que bate de frente, os veículos formando filas nas ruas. Os pássaros cantando num lugar mais afastado, trazem aos ouvidos os sons de diferentes instrumentos de uma orquestra natural, abafada pela grande onomatopeia civilizada, são vozes, buzinas, motores, começam os pequenos stresses, as pequenas discussões, os obrigados a pedir sustento, os falsos sorrisos, os desejos de bom dia por educação, mas há também os de coração, o beijo no rosto da criança, o selinho na namorada, o riso espontâneo para os pais, na mesa do desjejum, o primeiro "eu te amo", ou "eu te odeio" do dia, o "vai com Deus", o "bom trabalho", "bom estudo", "se cuida", e tudo isso que faz toda diferença sem que a gente perceba. Nasce o Sol, nascem as cores da claridade e todos os nossos costumes.


quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Através da bruma.

     Prospectou através da bruma nebulosa uma feição de mulher, bela mulher de sombras negras nos olhos e palidez mortal na pele, pintada como se fosse uma tatuagem de Lá Santa Muerte. Banhou-se em minhas águas, enfeitou-se em meus espelhos, pousou em mim seus olhos, que insistiam em mostrar-se profundos, mas que sabia eu, eram apenas reflexos de minha própria profundidade.
     Mostrou-se carinhosa comigo, falou-me com a intimidade de outrora e a ternura de outra vida. Encontramo-nos num plano sem tempo, com muito esforço caminhei arrastando uma das pernas, haviam revólveres que outros me entregaram, quando os tomei nas mãos, notei logo que eram de brinquedo, mas havia quem me pagasse.
     Ela confiou em minha palavra, ajudou-me e quis ficar em minha companhia, deu preferência a minha presença e disse não ser capaz de me ferir, era uma data especial, a Terra deu mais uma volta em torno do Sol e nós continuávamos vivos. Estranhei a data e ainda sim, mantive os olhos fechados, era a única maneira de enxergá-la.


Carlos E. Taveira dos Santos



quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Meu Aquiles Mulher.

Ponto fraco.
Sim,
pequeno ou
farto,
pra mim,
enfim me
mato,
moita,
tronco, pasto.
Afasto,
achego,
corro, encaixo
em baixo.
Alto
grito, calo
e o calo
na mão
do macho,
no vão,
no esculacho
do coração
capacho.
Aonde vão?
Quando passam,
pé,
pisante.
Palhaço,
há graça, mas
não acho,
não vejo,
não finjo,
não faço.
Meu erro
disfarço,
também piso,
mas descalço,
e me firo,
e me viro
do meu solo
me isolo
e fujo,
fico
farto
e fraco
fui,
outra vez ao mato,
a moita, o tronco e o pasto,
ao espaço
explano,
emano
fumaça,
ferida,
farsa,
forças
falsas
que abrem-me
invadem-me
acabam-me
desmontam-me
com o único
intuito
de me reconstruir.
Partir,
quebrar,
remendar
e sorrir,
só ir,
falar e ouvir,
aprender
escutar,
discernir
e se guiar
pra repetir.

Carlos Eduardo Taveira.


sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O desabrochar d'uma flor mecânica.

   Numa maquinação constante que só teve alivio com seu desabrochar maquinário, como uma flor mecânica que em suma era gente, passando assim o que estava na cabeça através dos dedos, numa constância rítmica que por vezes se fazia intermitente, logo após concluídas as variantes das ramificações que exigem ponderamento e pausa, tornava o dedo ao teclado e os dados ao quadrado, e assim pétala à pétala de ferro, abriu-se como cúpula engenhosa ou botão de flor cheirosa e descarregou seus aromas atrativos, recebeu abelhas, ou zunidos, ou aplausos, não pode discernir bem, estava toda desabrochada, mas se pudesse escolher, escolheria abelhas.